A inflação sobre os alimentos tem se tornado grande vilã das políticas do atual Governo, que não tem conseguido trazer efeitos práticos à mesa dos trabalhadores. O café que faz parte da degustação matinal de grande parte dos brasileiros tornou-se chafé ou foi substituído por chás diversos.
Não bastasse a crise de segurança alimentar trazida pela alta dos preços dos alimentos, nesta semana, em entrevista a redes de comunicação baianas, o Presidente Lula soltou um jargão vergonhoso: “tá caro? É só não comprar!”.
Embora, no fundo de sua fala exista uma certa correspondência com a lei da oferta e da procura, ditada nos estudos da economia, a situação não é nada favorável pois famílias que já são limitadas nas suas compras de gêneros alimentícios se tornariam ainda mais privadas do mínimo consumo.
É certo que, como dissemos, se a oferta de produtos se mantiver alta, sem adequada saída de consumo, invariavelmente seu preço se tornaria inferior, pois grandes estoques de alimentos sem saída para consumo não atende aos interesses do mercado, que precisa comercializar seus produtos para manter a microeconomia.
Contudo, não é tão simples deixar de consumir alimentos que fazem parte da rotina e da cultura dos brasileiros. Muitos podem sequer sentir o aumento dos preços, pois continuarão a consumir igualmente; no entanto, a grande e avassaladora maioria dos brasileiros já tem sido obrigada a fazer escolhas drásticas entre uma proteína bovina ou um ultraprocessado em formato de salsicha.
A sociedade verticalizada em que vivemos nos rememora as agruras sentidas n´O Poço, filme do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, em que se retrata a luta por uma alimentação digna e suficiente a satisfazer desde os níveis mais altos até os mais baixos da escala de riqueza-pobreza.
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No filme, a riqueza é representada pela ascensão e permanência nos níveis mais altos da escala, onde sempre são servidos verdadeiros banquetes, em contraponto aos níveis mais baixos, onde só sobram restos daquilo que os níveis mais altos se alimentaram. É uma crítica social indelével ao contexto de desumanização pela luta por uma alimentação adequada.
Não se olvida que no Brasil vivemos um poço de desigualdades, já que é um contrassenso ser um dos Países mais importantes no abastecimento de alimentos no mundo, liderando a exportação de carne de frango, bovina, soja, milho, café e açúcar, mas também ser um dos países que ocupa a 10ª posição no ranking mundial de desperdício de comida, sendo jogados no lixo 27 milhões de toneladas de comida, sendo que cada brasileiro é responsável, em média, por um desperdício de 41 quilos de comida por ano.
Excluídos os desperdícios relacionados às pragas e condições climáticas adversas, que iniciam logo na lavoura, passando pelo inadequado transporte e armazenamento, até chegar à mesa dos brasileiros, o maior desperdício, em torno de 60%, ocorre no âmbito doméstico.
Josué de Castro em “Geografia da Fome”, de 1946, bem dizia que “os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente”. É nesse contexto de proibição que vige a ideia de que a fome é um produto tão somente da falta de alimentos, mas que, na realidade, verifica-se que é em grande escala causada pela má distribuição das riquezas como forma de acesso a uma alimentação saudável.
É uma situação dolorosa do ponto de vista de quem passa fome, e talvez uma situação corriqueira para aquele que produz mais comida do que irá consumir, deixando as sobras na geladeira até o dia de joga-las no lixo.
A obra de Josué de Castro, médico e fisiologista, além de embaixador do Brasil na ONU, em Genebra, lança luzes através de uma pesquisa com metodologia científica, sobre mitos que ainda hoje são lançados de que o problema da fome no Brasil é resultado da improdutividade de seus cidadãos, que optam pelo ócio ao invés do trabalho.
Nesse contexto, o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar, lançado em 2024, trouxe metas a serem perseguidas por todos os níveis de governo, como forma de alcançarmos maior excelência e justiça distributiva sobre a produção e consumo de alimentos no Brasil.
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Ações como fomentar o abastecimento local, ampliar equipamentos públicos, e ampliar a oferta e acesso a alimentos saudáveis, priorizando as comunidades periféricas, utilizando para isto de parcerias com organizações não-governamentais são essenciais no combate a essa alta de preços, que gera insegurança alimentar.
É preciso rever posicionamentos, tirando-nos do poço da ignorância, inclusive, com relação ao Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) que tem sido duramente criticado durante anos pelas ocupações de terras com intuito de acelerar a reforma agrária. Sem paixões ideológicas de cá ou de lá, é fato que o MST é atualmente o maior produtor de arroz orgânico (sem uso de agrotóxicos na lavoura) do Brasil, conforme dados do Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA, 2022).
Próximos da nossa realidade é o Assentamento Boa Sorte, em Restinga (SP), que fornece produtos orgânicos como frutas, verduras, legumes e laticínios para a merenda escolar, pelo Programa de Agricultura Familiar, a preços justos pela qualidade encontrada nos produtos.
Diversos são os caminhos possíveis para nos tirar desse poço que nos distancia cada vez mais de equacionarmos a ponderação entre o desperdício e a fome, entre a possibilidade ou não de escolher o que comer ou comer o que estiver mais barato, dentre tantas outras trágicas opções.
PARA VER: O Poço (2019, Galder Gaztelu-Urrutia, na Netflix)
PARA OUVIR: Feira de Mangaio, Clara Nunes, 1979 – “eu tenho pra vender, quem quer comprar?”
PARA LER: Geografia da Fome (Josué de Castro, Editora Todavia, 2022)