O padrão de diversas raças prevê o corte das orelhas dos cães. Isto é estética ou crueldade?
Antes de qualquer consideração, a conchectomia– o corte das orelhas dos cães visando embelezá-los – é proibida no Brasil, considerada um crime. Juntamente com o corte de cauda (caudectomia), a prática, visando apenas aspectos estéticos, pode ser enquadrada na Lei de Crimes Ambientais.
Em 2020, foi sancionada a lei nº 16.064/20, que alterou o texto aprovado em 1998 (lei nº 9.605/98). Desde então, os maus tratos contra animais domésticos, silvestres e de estimação – aqui incluído o corte das orelhas dos cães – acarretam penas de dois a cinco anos de reclusão, além de multas.
Com o novo instrumento legal brasileiro, a conchectomia foi equiparada a agressões físicas e privações. O delito deixou de ser considerado um crime de menor potencial agressivo. Os eventuais condenados não podem substituir a cadeia pelo pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços comunitários, por exemplo.
A conchectomia
A legislação brasileira, no entanto, não encontra eco em muitos outros países. A Federação Cinológica Internacional (FCI) prevê o corte estético das orelhas e/ou da cauda de alguns cães, desde que o procedimento cirúrgico esteja previsto seja permitido.
Nos EUA, os dois grandes clubes de cinofilia (AKC – American Kennel Club e UKC – United Kennel Club) também determinam o corte estético para algumas raças, como o pitbull e o doberman, por exemplo. O clube britânico (The Kennel Club) prevê as amputações apenas em alguns casos, mas a prática é rejeitada pela maioria dos criadores.
O corte das orelhas
Para muitas pessoas, a imagem mental que se forma ao pensar em um doberman é a de um cachorro de grande porte, com orelhas pequenas e pontudas, portadas sempre eretas. Mas esta não é uma característica natural da raça. O aspecto é obtido através de uma cirurgia, que é desnecessária e implica riscos para a saúde dos cachorros.
Algumas pessoas alegam que a questão estética precisa ser respeitada: afinal, muitos de nós também perfuramos orelhas (e outras regiões anatômicas) para usar brincos e piercings. Mas, mesmo sem entrar no mérito, o corte das orelhas vai muito além de uma simples agulhada.
A orelha (mais propriamente, a orelha externa, também chamada de órgão vestíbulo-coclear) é formada pelo pavilhão auditivo, cuja função é captar os sons do ambiente, canalizando-os em direção ao cérebro, para que sejam interpretados.
O órgão é formado por cartilagens flexíveis e irregulares. A região é bastante irrigada pela corrente sanguínea e conta com muitos terminais nervosos. No fundo da orelha, existem muitas glândulas sebáceas, que produzem a cera (ou cerume), substância que protege as estruturas internas da audição e impede a passagem de poeira e de micro-organismos.
A conchectomia compromete parcial ou totalmente todas estas funções. Apesar de não ser recomendada pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) desde 2008, o corte das orelhas ainda atrai alguns criadores. A prática é empregada principalmente nas seguintes raças:
- american bully;
- boston terrier;
- boxer;
- doberman;
- dogue alemão;
- mastim napolitano;
- pitbull (american pit bull terrier);
- schnauzer (padrão e gigante).
O corte das orelhas dos cães não cumpre nenhuma função específica, é apenas estético. A conchectomia não aumenta a capacidade de audição, apesar de aumentar a sensibilidade especialmente aos sons agudos.
A conchectomia corretiva é empregada em casos específicos – a maioria deles decorrente de traumas, como acidentes e brigas. Como técnica de embelezamento, caso médicos veterinários executem o procedimento, podem receber sanções do CFMV, que vão da advertência sigilosa à cassação da licença profissional, independentemente das sanções criminais e cíveis.
O corte da cauda, também proibido no Brasil, tinha algumas justificativas. No caso do old english sheepdog, o rabo era considerado um “ponto fraco” da anatomia dos cães, que precisavam defender os rebanhos de ataques de ursos e lobos. Mas já faz muito tempo que os cães pastores deixaram a função para se dedicar a outras tarefas – em especial, a de fazer companhia para os humanos.
O procedimento continua sendo realizado em alguns canis, sempre com a justificativa de que os cães ficam “mais bonitos” com as orelhas pontudas. O motivo original é que os cachorros, quando ficam com as orelhas eretas, tomam uma aparência mais agressiva.
Efetivamente, orelhas eretas são sinais específicos de alerta. Isto não significa, porém, que os cães devam ficam permanentemente em “estado de emergência”: eles precisam de tempo também para brincar, descansar, explorar os ambientes, etc.
Um pouco de história
O corte das orelhas dos cães surgiu como prática frequente na Alemanha, no século 19. Por isso, a maioria das indicações de conchectomia é relativa a raças alemãs, como boxers, schnauzers e dobermans.
Antes disso, ainda no século 17, há a descrição do procedimento, realizado em um cão pastor, que, de acordo com o testemunho dos criadores, teve a audição ampliada e ficou menos exposto aos predadores. Nenhuma das alegações é justificada de acordo com os dados da ciência atual.
Os cachorros eram adotados basicamente para cumprir funções, como guardar rebanhos, proteger patrimônio e caçar. A vida rústica, quase sempre ao ar livre, facilitava o desenvolvimento de inflamações: o corte foi visto como uma medida para reduzir otites e algumas manifestações alérgicas.
O corte também foi adotado para os cães envolvidos nos esportes sangrentos, em que duelavam com outros cachorros, além de touros, lobos e ursos. Cães do tipo bull sempre estiveram entre os preferidos nas rinhas de lutas.
Em um confronto, seja com um lobo que tenta agarrar uma ovelha, seja com um oponente no ringue, as orelhas são pontos mais frágeis. Quando mordidas, surgem sensações dolorosas; além disso, os lutadores e guardiães sempre corriam o risco de ter as orelhas arrancadas, fato que reduzia a “vida útil” dos cachorros. Era uma visão totalmente utilitarista.
Os riscos do corte das orelhas dos cachorros
Geralmente, o corte das orelhas dos cachorros ocorre antes que eles completem dois meses de vida. Nos países em que o procedimento é permitido, não é estabelecido nenhum protocolo: a maioria das cirurgias é realizada apenas com anestésicos tópicos.
Por várias décadas, firmou-se a crença de que a conchectomia não provoca dor, mas estudos atuais demonstram que a cirurgia é dolorosa e existem casos documentados de morte entre filhotes que se submeteram ao procedimento.
Existem outros riscos na cirurgia:
- infecções virais, bacterianas e fúngicas nos cortes;
- sangramentos provocados por problemas de coagulação não diagnosticados previamente;
- reações alérgicas aos medicamentos empregados (da anestesia à cicatrização);
- sepse, uma infecção generalizada que pode causar a morte.
Alguns criadores alegam que a conchectomia, ao “levantar” as orelhas do animal, reduz problemas de infecções e inflamações no canal auditivo. As otites, no entanto, são muito mais comuns entre os cães de orelhas grandes e caídas, como o basset hound e o cocker spaniel.
Para evitar alergias nas orelhas, os tutores só precisam limpar os órgãos regularmente e, durante os banhos e brincadeiras com água, evitar que as orelhas fiquem molhadas. Em outras palavras, tudo que os tutores precisam é de uma toalha felpuda limpa e alguns minutos de trabalho.
Além dos riscos inerentes ao procedimento cirúrgico, o corte das orelhas prejudica a comunicação dos cães. Depois dos primatas superiores, os cachorros são os animais com mais capacidade de expressões fisionômicas, mas, com as orelhas sempre em pé, eles não conseguem dizer que estão relaxados, que está tudo em ordem, etc.
Fonte: caesonline