A alteração da política de moderação de conteúdo da Meta, gigante responsável pelo Instagram, WhatsApp e pelo Facebook, tornou-se assunto semanal desde os meios mais eruditos, até nas conversas mais informais, sob a justificativa de que agora “tudo pode” dentro das principais redes sociais, que congregam, segundo dados da própria rede, cerca de 102 milhões de usuários no Brasil.
Sob a batuta da “liberdade de expressão”, Mark Zuckerberg anunciou, dentre outras medidas que guinaram a empresa para a política ideológica trumpista, que passariam a não mais considerar como ofensivos e violadores dos termos de uso da plataforma, os discursos que defendem que ser LGBTQIA+ é uma doença ou um desvio de moralidade.
A mudança retroage em políticas sociais afirmativas da própria Meta, que já criou temas de conversas do Messenger, com o arco-íris do orgulho, a bandeira de três cores dos transgêneros e de quatro cores dos não-binários, estas últimas já extintas com a nova política implementada.
Trata-se de uma mudança por todas as frentes: comportamental, tanto para fazer quanto não fazer, visual e estética, mas também de conformidade e legalidade, pois a sede da empresa foi para o Texas, no Colorado, onde as regras são menos rígidas para quem adota uma não-moderação das redes.
Talvez nosso caro leitor se pergunte a razão do espanto. A decisão da Meta não só está se utilizando indevidamente das bases da “liberdade de expressão” para manter uma não-moderação de conteúdo prejudicial à saúde mental de diversas pessoas da comunidade LGBTQIA+, como também revela que pretende ser a rede social líder naquilo que vemos outrora acontecer com o X, de Elon Musk, com a diferença de que, agora, haverá o apoio político dos EUA contra a soberania do Estado brasileiro.
O retrocesso em políticas sociais é vedado pelos princípios que influenciam a nossa Constituição Federal, assim como é seguro afirmar que os direitos fundamentais, dentre os quais o de ser tratado com dignidade humana, são exigíveis também dos particulares, e não apenas do Poder Público.
O que a Meta pretende é um verdadeiro retrocesso, sob o falso argumento da liberdade de expressão, pois não é lícito a propagação do discurso de ódio (hate speech), que reduz a dignidade humana de cidadãos, principalmente por meio da internet e das redes sociais. É aquele velho ditado, para simplificar: o direito de um termina quando começa o direito do outro.
O discurso propagado por meio das redes sociais, possui abrangência significativa e exponencial compartilhamento. E o cuidado com o discurso é advertência muito bem colocada por Mary Griffith, personagem do filme “Orações para Bobby”, drama de 2009, do diretor Russel Mulcahy.
O filme conta a história de uma mãe que tenta, a todo custo, “curar” seu filho homossexual através de influência religiosa. Bobby não suporta a pressão do discurso da mãe e resolve atentar contra a própria vida. Um discurso renitente de que ser gay era uma doença fez com que Bobby adotasse a postura mais trágica para aquele contexto familiar.
Após passar pelo luto, Mary Griffith passa a uma postura de mais compaixão e entendimento sobre a situação do filho, e na cena final, ao defender perante autoridades locais o direito de celebrarem o orgulho de ser quem se é, assim reverbera:
Não é preciso chegar muito longe para saber que a história de Bobby se repete diariamente. A própria história dele é um retrato vivo, ocorrido na Califórnia na década de 80, e num indesejável ciclo não se finda, sendo reforçado por discursos como estes que agora a Meta pretende albergar em suas redes sociais.
A Alemanha, país cuja história se dedica ao combate do discurso de ódio, frente ao que propalou Adolf Hitler ao pregar a supremacia da raça ariana, dando ensejo a um dos períodos mais inglórios da humanidade, tem trabalhado com afinco para que a internet não se constitua num território sem regras, para maltratar cidadãos e possibilitar o engrandecimento de governos totalitários.
A ausência de moderação adequada dos conteúdos é matéria prejudicial a todos os usuários, que podem ser atacados em sua honra, sua dignidade e sua imagem por qualquer postagem, havendo de lidarem com a frustração da inação diante de uma plataforma que se orienta unicamente pelo ganho de capital político e monetário.
É preciso cuidado com o que circula nas redes pois como alertou Mary Griffith, a história de Bobby tem relação direta com a falta de empatia e de respeito à dignidade e condição humana dele. Dizer “Amém” a toda e qualquer postagem, tal como pretende Zuckerberg, o fará não apenas como falso moralista, mas também como responsável pela vida de inúmeros cidadãos, atingidos com a omissão inaugurada diante da enviesada liberdade que se quer tutelar.
Até que consigamos (acredito ser impossível) deletar todas as nossas redes sociais e voltarmos a ter nossa rede de conversas na calçada de casa ou na mesa de um bar ou café, será preciso convivermos dignamente nas redes sociais que acabam com o livre-arbítrio, estimulam emoções negativas, distorcem a percepção da verdade e precarizam profissões… como constatou Jaron Lanier no livro que a seguir indicamos.
Até lá, necessitamos lutar por um ambiente minimamente saudável para que nossas discussões sejam proveitosas e para que não tenhamos na internet mais um vício capaz de trazer tantos sintomas psíquicos influentes a criarmos novos Bobbys.
PARA VER: Orações para Bobby (2009, Russel Mulcahy, 2h, na Prime Video)
PARA OUVIR: Algoritmo íntimo (Criolo part. Ney Matogrosso – 2022)
PARA LER: Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais (Jaron Lanier, com tradução de Bruno Casotti, Editora Intrínseca, 2018)
Algoritmos de destruição em massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia (Cathy O´Neil, com tradução de Rafael Abraham, Editora Rua do Sabão, 2021)