A recente criação de um vale-alimentação destinado aos vereadores em Franca (SP), inclusive em valores superiores ao concedido aos demais servidores públicos municipais gera revolta e indignação não somente destes, mas de toda a população, além de suscitar um debate ético e moral profundo. Em um cenário no qual a inflação dos alimentos atingiu 7,69% em 2024, pressionada por fatores ecológicos como secas e enchentes que afetaram a produção agrícola, tal disparidade em benefícios de natureza alimentar evidencia uma desconexão preocupante entre os eleitos e a realidade enfrentada pela maioria dos trabalhadores municipais.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) enfatiza a importância da igualdade de tratamento entre todos os trabalhadores, promovendo condições de trabalho justas e equitativas. Ao privilegiar determinados cargos e posições políticas com benefícios superiores, cria-se uma hierarquia injusta que contraria os princípios de equidade e solidariedade, fundamentais para a coesão e moral da força de trabalho.
É um direito humano básico o acesso a uma alimentação adequada, essencial para a saúde e o bem-estar. As políticas públicas devem assegurar, no contexto em que abordamos hoje em nossa coluna, um acesso igualitário de todos os servidores aos recursos que garantam a sua subsistência de dignidade.
A concessão de benefícios diferenciados não apenas fere esse direito, mas faz perpetuar desigualdades sistêmicas dentro da administração pública, já que na porta ao lado, por vezes realizando o mesmo trabalho, servidores são tratados desigualmente.
E no caso, a revolta é gerada na constatação de que o trabalho desempenhado pelos servidores municipais exige maior tempo de dedicação, rigoroso controle de comparecimento ao trabalho, além de já possuírem salários que são considerados inadequados para a realidade brasileira, já que o DIEESE considera que para se viver hoje no país seria necessário um salário cerca de 5 (cinco) vezes maior do que o salário-mínimo atual.
A busca pela equidade nas profissões não é uma luta nova, pois desde a industrialização somente os movimentos dos trabalhadores, inclusive por meio de greves foi que direitos essenciais conseguiram serem implementados, como a limitação das jornadas de trabalho e o direito a férias e descansos remunerados.
A cultura e as artes frequentemente refletem e criticam as disparidades sociais. O filme brasileiro “Que Horas Ela Volta?” (2015), dirigido por Anna Muylaert, ilustra as tensões de classe e as desigualdades presentes na sociedade brasileira. Assim como na narrativa do filme, onde privilégios e diferenças de tratamento são evidenciados, a situação em Franca revela uma discrepância que merece atenção e correção.
A implementação de políticas que favorecem uma minoria em detrimento da maioria compromete a integridade e a eficiência do serviço público. Para promover um ambiente de trabalho harmonioso e produtivo, é crucial que todos os servidores sejam tratados com justiça e respeito, especialmente no que tange a necessidades básicas como a alimentação.
A situação vivida em Franca ecoa os gritos silenciosos de Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo, quando, com palavras simples e cortantes, ela narra a fome como rotina e a exclusão como destino. Carolina, catadora de papéis e cronista da miséria brasileira, descreve a dor de uma mãe que não pode alimentar seus filhos enquanto observa a abundância inalcançável dos mais privilegiados.
O contraste entre o aumento do vale-alimentação dos cargos políticos e a dificuldade de acesso a uma alimentação digna por parte de trabalhadores públicos lembra que ainda vivemos num país onde “comer” é um verbo distribuído por classes sociais. A lição da escritora permanece atual: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome.”
Nas artes visuais, obras como Operários, de Tarsila do Amaral, escancaram a coletividade do esforço popular frente à indiferença das elites, em pleno contexto de industrialização, onde as incertezas dos trabalhadores geram rostos apáticos. Os rostos anônimos e sérios pintados por Tarsila são o retrato dos muitos servidores que, mesmo sendo a base da máquina pública, permanecem invisibilizados em decisões como essa.
Na música, canções como “Cidadão” (Zé Geraldo) e “Comida” (Titãs) denunciam a urgência da pauta moral sobre alimentação adequada. Em “Cidadão”, Zé Geraldo denuncia que o cidadão embora seja parte da construção de diversos prédios, não se pode reconhecer assim sob a suspeita de que quer mais, além do que, com suor, teve direito. É o retrato do que se vê agora em Franca, em que no prenúncio de uma greve, servidores precisarão demonstrar que são parte da máquina pública e precisam serem tratados com igualdade e respeito.
E ainda, “Comida”, dos Titãs, há uma denúncia: “A gente quer comida, diversão e arte”, mas sem a valorização de um dos direitos mais essenciais – a alimentação – o que sobrará para a diversão e a arte?
Que essa trilha sonora de denúncias e resistência sirva como lembrete de que políticas públicas devem nutrir vidas, e não reforçar privilégios junto a uma classe desconexa da realidade social.
PARA VER: Que horas ela volta? (direção Ana Muylaert, 2015, disponível na Netflix)
PARA OUVIR: Cidadão (composta por Lucio Barbosa) – disponível na popularidade da voz de Zé Ramalho, no YouTube
PARA LER: Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, Editora Ática, 10ª Edição (disponível na Amazon).