Na última semana, a companhia aérea Azul anunciou que aumentará o limite de peso para que cães e gatos possam ser transportados nas cabines dos aviões: de 7kg para 10kg. Esse peso já era adotado por outras empresas nacionais. Usando como gancho o anúncio, a Consumidor Moderno decidiu procurar especialistas que nos ajudassem a entender quais as principais dificuldades dos tutores de animais na hora de viajar levando o seu animal no transporte aéreo, mesmo em uma sociedade que se torna cada vez mais pet friendly.
A conclusão é que as companhias aéreas estão muito atrasadas em relação ao entendimento da sociedade que passou a enxergar o animal como parte da família. No Brasil, principalmente, quando o assunto é transporte aéreo de animais domésticos, o atraso em relação a outros países é perceptível. Isso se deve, de acordo com especialistas, à ausência de uma regulamentação da ANAC, que dá às companhias aéreas total liberdade para criarem suas próprias regras.
Leandro Furno Petraglia, do escritório Furno Petraglia e Pérez Advogados, afirma que a falta de uma regulamentação faz com que as companhias tenham critérios distintos, confundindo a cabeça do consumidor. Além disso, segundo Leandro, por não ter qualquer padrão a ser seguido, mesmo dentro da companhia, normas diferentes são adotadas para cada destino.
“A GOL transporta na cabine animais de até 10 kg, a Latam de até 7 kg, a Azul era 7 kg, agora mudou para 10 kg. Na Qatar Airways é permitido o transporte de falcão, mas gato é proibido. Na Ibéria você pode levar tartaruga, mas não pode coelho. Os tutores, os consumidores, ficam sem saber como se planejar, como se organizar”, explica o advogado.
De acordo com Leandro, até 2020 a Agência Nacional de Aviação (ANAC) tinha uma portaria que dizia que animais domésticos, “como cães e gatos”, deveriam ser transportados pelas empresas de aviação civil. Essa normativa estava sendo usada, de forma equivocada, para reduzir o embarque de animais domésticos a cachorros e gatos, excluindo outras espécies como coelhos, por exemplo. Hoje, essa portaria foi derrubada e a única regulamentação da ANAC que trata de transporte de animais é a que dá às companhias aéreas total liberdade de decidir sobre essa “logística pet”.
Com a falta de regulamentação, o Brasil está atrás de outros países em temas extremamente importantes como no reconhecimento dos animais de apoio emocional, ou animais de serviço, que independente do tamanho podem acompanhar seus tutores nas cabines. A única exceção é o cão guia, utilizado por deficientes visuais, que acaba sendo aceito pelas aéreas sem muitos questionamentos. Os cães de apoio psiquiátrico, por exemplo, usados como suporte emocional por muitas pessoas que sofrem com depressão, ansiedade, síndrome do pânico e até mesmo por indivíduos com autismo e epilepsia, são completamente ignorados pelas companhias aéreas brasileiras.
O que acontece é que as pessoas que dependem de ter esses animais com elas no voo por uma questão de saúde, física e mental, acabam precisando recorrer ao judiciário para conseguir uma liminar que permita o embarque dos animais na cabine das aeronaves. “É o judiciário corrigindo a deficiência do legislativo”, afirma Leandro Furno Petraglia. O advogado ainda complementa dizendo que com a omissão da ANAC e diante de um legislativo ainda cru sobre o tema, são os juízes que estão criando as regras.
Leandro contou à Consumidor Moderno o caso do Luigi, um golden de 40 kg, que conseguiu judicialmente autorização para viajar como cão de suporte emocional. A família estava de mudança para França em outubro do ano passado. A tutora de Luigi foi diagnosticada com ansiedade generalizada, distúrbios de atividade e atenção, e hipótese diagnóstica de autismo atípico. Mesmo encaminhando todos os documentos para a companhia, pedindo o transporte de Luigi como animal de suporte emocional, a empresa tinha negado alegando que o serviço de ESAN (cão de suporte emocional) só estava disponível para viagens para o México e para Colômbia.
Na sentença, o juiz autorizou o embarque de Luigi dentro da cabine, junto à tutora, sem a necessidade de caixa, apenas guia. Além disso, o magistrado determinou que Luigi pudesse viajar nessas condições, sempre que necessário, dentro do prazo de um ano.
“A gente nota um aumento no volume de casos no escritório e por que isso acontece? Porque a sociedade já evoluiu e os animais hoje são considerados como parte da família. As famílias agora são multiespécies e não vão desistir de levar os animais para onde elas forem. Não vão deixar os animais para trás. Isso já é uma realidade, falta o direito acompanhar essa mudança”, enfatiza Leandro.
Em 2022, o escritório Furno Petraglia e Pérez Advogados atendeu mais de 200 casos de transporte aéreo de pets. A maioria deles envolvendo animais de suporte emocional ou braquicefálicos (animais de focinho curto, com problemas respiratórios).
Não dá para esperar a “boa vontade” das companhias
Algumas companhias, como a Latam, reconhecem e aceitam animais de apoio emocional dentro das cabines apenas para destinos específicos, como México e Colômbia, que têm uma legislação forte nesse sentido. Leandro acredita que enquanto não houver regulamentação e a mudança depender da “boa vontade” ou da “coerência” das empresas, nada vai acontecer.
“Cabe à ANAC defender o consumidor da agressiva lógica da lucratividade das empresas aéreas. A Agência precisa parar de se encolher nesse dever que é dela. Por elas mesmas, as companhias aéreas não vão avançar nunca nesse sentido, porque gera transtornos, exige investimento. Se não precisa ter, não vai ter”, reforça o advogado.
O escritório Furno Petraglia e Pérez Advogados está movendo duas Ações Civis Públicas que visam determinar que a ANAC regulamente o embarque aéreo dos animais na cabine, resolvendo a situação dos animais domésticos e, também, dos animais de suporte emocional. As ações estão tramitando na Justiça Federal. Além disso, os advogados do escritório estão participando de um grupo de estudo, junto com a Universidade Federal do Paraná, para desenhar uma proposta de regulamentação. Uma das sugestões é separar voos específicos e torná-los realmente Pet Friendly, pelo menos em trechos com grande tráfego de aeronaves, como RJ-SP.
“Os cachorros hoje podem entrar em quase todos os lugares: no shopping, no metrô, até no gabinete do prefeito. A família inteira tem que viajar com segurança e conforto, e isso agora inclui os animais. O que a gente vê é que mesmo nas decisões favoráveis do judiciário, a ênfase ainda é nas necessidades humanas e não na dignidade dos animais. É uma visão extremamente antropocêntrica, que já passou da hora de ser superada”, opina Leandro.
O advogado conta ainda que, apesar dos desafios, o escritório está tendo muitos motivos para comemorar. Leandro disse que, nos últimos anos, diversas espécies conseguiram na justiça o direito de viajar: dezenas de coelhos, hamsters, porquinhos da índia e até ratos domésticos. Um dos felizardos foi o Flokinho, um coelho que embarcou em dezembro de 2021 e conquistou o direito de embarque aéreo na cabine pelos próximos 12 meses. Além disso, Lollo foi a primeira calopsita a ser reconhecida como animal de suporte emocional.
Saga: famílias desenham rotas inusitadas para não deixar animais para trás
Para quem considera o animal como parte da família, tomar a decisão de deixá-lo viajar no porão de uma aeronave ou até ser “despachado” como “carga viva” com uma logística de carga, é extremamente difícil e até desesperador. Cães e gatos de porte pequeno, que cabem nas caixinhas ou bolsinhas que vão embaixo do assento, conseguem embarcar nas cabines com menos dificuldades. Mas, mesmo assim, o tutor precisará analisar as exigências de cada companhia para saber se seu bichinho poderá de fato embarcar.
É bom lembrar que os critérios das empresas aéreas vão além do peso. A altura e o tamanho do animal são determinantes, e a espécie também é levada em consideração. Sem contar que, em viagens internacionais cada país tem regras próprias para que os animais entrem nos territórios.
Os EUA, por exemplo, pedem uma documentação prévia para a entrada de cachorros no país, que precisa ser aprovada pelo governo. O preparo do cão para a viagem dura em média quatro meses. Já nos aeroportos de Portugal, o horário do voo interfere diretamente na entrada dos animais em território nacional. Não são em todos os horários que a equipe de veterinários do aeroporto está a postos para fazer os trâmites de imigração. No Canadá, apenas alguns aeroportos recebem os animais, o que obriga as famílias a programarem um deslocamento por terra do ponto de desembarque até o destino final. São muitos detalhes e regras que mudam o tempo todo.
“Recebemos muitas pessoas que precisam mudar de país porque foram transferidas no trabalho, ou que vão fazer uma viagem de intercâmbio, ou que estão se mudando para tentar melhorar de vida e que não vão deixar o pet para trás porque ele é parte da família”, conta Ana Lechugo, dona da agência de viagens Sonho & Magia. Panda, foi um dos animais que conseguiu ficar juntinho da sua tutora com a ajuda de Ana. O bulldog francês foi o primeiro caso judicial da agência. O interessante é que a tutora dele já estava em Portugal e o juiz determinou que ele fosse ao encontro dela como cão de apoio emocional, acompanhado de dois veterinários.
Ana Lechugo trabalha desde 2015 com turismo e abriu a Sonho & Magia em 2018 tendo como foco viagens para Orlando, por ser uma apaixonada pela Disney. Em 2021, uma amiga de Ana, que tem uma empresa especializada em documentação veterinária, pediu ajuda dela com a logística para o transporte aéreo de pets. Foi então que a empresária entrou nesse universo, se especializou e hoje é responsável por ajudar famílias a chegarem aos seus destinos, “sem deixar ninguém para trás”. Os principais destinos dos clientes que procuram a agência são: EUA, Europa (entrando por Madri) e Canadá. A maioria dos animais são cães de raças braquiocefálicas e de apoio emocional.
“O que a gente faz hoje é ajudar o tutor do animal a desenhar uma rota combinando a companhia aérea, que aceita levar o cachorro; com a escolha da cidade destino em que o aeroporto tenha estrutura para receber esse animal; e ajudar a garantir a consistência dessa reserva, porque acontece de estar tudo certo, mas ter alguma mudança de escala, alterações no voo, que fazem com que na hora do check-in o passageiro não consiga embarcar com o animal”, explica Ana.
Na semana passada, a agência de Ana conseguiu fazer com que as vira-latas Aria e Nina chegassem até Vancouver, no Canadá, onde vão morar com os tutores. A família tinha pego uma passagem direto para a cidade canadense, mas as duas foram impedidas de embarcar. A solução encontrada pela agência e abraçada pelos tutores foi que eles viajassem para Toronto e pegassem um trem, que atravessava o Canadá, até Vancouver. Assim foi feito. A viagem de trem durou quatro dias, mas o final foi feliz.
Uma outra história é a do Theo e da Jolie, irmãos de coração. A família deles morava em Porto Velho em Rondônia e estava de mudança para Paris. O Theo perdeu uma parte do focinho em um acidente e não conseguiria ir no porão do avião. Apesar de pequenos, eles também não atendiam aos requisitos da companhia para irem na cabine. O pedido feito à justiça em Rondônia foi negado. Os tutores dos animais tiveram que vir com eles de carro até São Paulo, para da capital paulista embarcarem em um voo para Paris com conexão no México.
Para Ana, o Brasil está muito atrasado em relação a outros países quando o assunto é levar pets nos aviões. A empresária também destaca a falta de regulamentação por parte da ANAC, que resulta em uma despadronização entre as companhias e em uma insegurança para o consumidor.
“O pior para mim ainda é a falta de profissionais treinados e a dificuldade de se conseguir informação. Você entra em alguns sites e está lá que a companhia aérea leva cães em voos para os Estados Unidos, mas quando vai no final da página, em letras menores, descobre que o serviço está suspenso. Falta informação, falta preparo. O menos complicado hoje é a documentação sanitária”, acredita a dona da agência.
Na contramão da sociedade
Em contraste com a sociedade, que hoje é formada por “famílias multiespécies”, como define Ana, o setor de aviação civil parece avançar a passos muito lentos para se adequar a essas mudanças. Em alguns momentos são notados até retrocessos, como é o caso da Avianca que, segundo especialistas, tinha uma política exemplar no transporte de animais de suporte emocional, levando cães de até 40 kg na cabine, mas que já anunciou que vai limitar o tamanho dos animais a partir de fevereiro.
Olhando para o futuro, Ana Lechugo, dona da agência de viagens Sonho & Magia, vê como mais urgente o Brasil avançar na questão dos animais de apoio emocional, para só depois aprofundar outras questões relacionadas ao transporte de animais em aviões. “Eles precisam ser reconhecidos. Mesmo quando são certificados como animais de serviço psiquiátrico, os animais de suporte emocional não são reconhecidos pelas companhias. É uma briga boa e muitas vezes acabamos tendo que levar para a justiça”, enfatiza a empresária.
Ana lembra que a saúde mental hoje é vista com muita atenção pela sociedade e pelos próprios governos. Ela reforça que as pessoas que sofrem com depressão, ansiedade e dependem emocionalmente dos animais não podem ser negligenciadas dessa forma pelas companhias aéreas. “É só ter vontade e planejamento para estabelecer limites: em cada voo só vão poder ir três pets na cabine ou vão ter espaços específicos para os pets nas cabines ou voos especiais. Soluções existem”, defende a dona da agência. Segundo ela, os grandes aeroportos do mundo já estão preparados para receber os animais domésticos.
Fonte: Consumidor Moderno