Habermas, festejado filósofo e sociólogo alemão, muito estudado no direito, diz que o direito de asilo é um direito humano. Suas origens alemãs o fazem ter apropriado peso histórico para dizer, como vivência, o quão necessário foi a imigração de povos judeus durante o regime totalitário do fascismo alemão.
Não importa se por causas econômicas, filosóficas, religiosas, étnicas e raciais, ou pelo simples desejo de viver o “sonho americano”, as pessoas migram, atrás de condições mais favoráveis do que aquelas vivenciadas até então. Nenhum país, todavia, é obrigado a acatar um pedido de asilo, pela motivação que ele tenha. Da mesma forma, as políticas imigratórias são impostas como forma de controle populacional e cultural, e traduzem-se em legítimas escolhas de soberania de cada país.
Graciliano Ramos desenhou a migração em Vidas Secas pela figura de uma família que fugia da seca e da fome. Fabiano, vaqueiro de poucas palavras, “tinha o coração grosso [e] queria responsabilizar alguém pela sua desgraça”, enquanto caminhava sem rumo na tentativa de afastar-se do seu destino de sempre migrar.
E assim, hoje vemos a existência de diversos Fabianos, muitos deles com destino aos Estados Unidos da América, com a promessa de ganhos vistosos para a realização dos mesmos serviços que normalmente fazem a preços carcomidos pela inflação e pela dificuldade de desenvolvimento inerentes a países pobres.
O que entristece, todavia, é que a maioria desses Fabianos não têm a mesma sorte de manter suas famílias unidas, mesmo nas adversidades. Fabiano migrava com Sinhá Vitória e seus dois filhos, além da icônica cadela Baleia, antagonista personagem cujo nome contrasta com o lugar onde vivia.
Como revelado no documentário de Errol Morris, Separated, de 2024, indicado ao Oscar 2025 de Melhor Documentário, as imigrações para os Estados Unidos sob a era de Donald Trump possuem um viés separatista indefensável: crianças e suas famílias são separadas na fronteira, de modo que os infantes são recolhidos em centros de imigração, enquanto seus pais são deportados para seus países de origem como violadores da lei.
A política imigratória de “Tolerância Zero” do Governo Trump separa crianças e adolescentes de seus parentes imediatos, como seus pais ou mães, que são levados a centros de detenção, enquanto as crianças são colocadas em famílias adotivas ou são colocados com parentes distantes, regulares dentro dos Estados Unidos.
A questão é que a separação não é temporária e pode durar anos ou mais da metade de suas vidas, à espera do reencontro com seus pais ou mães. Assim, além de lidar com o problema que ensejou a opção pela imigração, estas famílias necessitam lidar também com a separação de seus parentes, um agressivo revés a toda uma situação já bastante temerária.
Enquanto isto acontece a Organização das Nações Unidas (ONU) se vê de mãos atadas para denunciar e adotar providências em face desta violação de direitos humanos, pois da mesma forma que a soberania dos Estados merece respeito internacional, existem regras humanitárias para deportação de imigrantes ilegais, dentre as quais a que prevê não poder haver separação das crianças de suas famílias, de modo forçado, sempre em vista ao melhor interesse da criança, assim estabelece a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
A política imigratória que agora vem sendo retomada no Governo Trump II continua, porém de modo mais acentuado, com as mesmas violações de direitos humanos, justamente pelo país que soberba dizer que é um dos que mais protegem a liberdade: um verdadeiro contrassenso. Onde está a liberdade em promover uma retirada forçada de crianças de suas próprias famílias, mantendo-as segregadas de seus parentes?
São tempos tenebrosos para a comunidade internacional, pois recorda-se que a ONU foi criada justamente para evitar-se que os Estados se sobrepusessem com suas leis e atos face ao bem comum de toda a sociedade internacional. Somente quando Estados exercem sua soberania com respeito às regras de direito internacional, notadamente as que preveem normas de direitos humanos, é que se consegue atingir a paz entre os povos.
É preciso estar atento (e forte!, como diria Gal Costa) às manobras que são exercidas por potências como os EUA, pois o ultranacionalismo, com desrespeito ao homem como seu igual, nos levou a um período sombrio da história. A única diferença, talvez, é que agora o líder não usa bigode e que a comunidade internacional contém mecanismos para refrear posições que, antes de revelarem uma ideologia, importam em um certo nível de loucura.
PARA VER: Separated (2024, Errol Morris, em breve na PrimeVideo)
PARA OUVIR: Encontros e Despedidas (composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, na interpretação de Maria Rita – 2003) – “tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais”
PARA LER: Vidas Secas (Graciliano Ramos, Editora Record, 2019 – 159ª edição)