Um caso raro para a Justiça está em andamento em Vacaria. Uma advogada tenta reverter a doação de uma cachorra a uma funcionária de uma pet shop. A adoção foi feita em março deste ano. Semanas depois, a advogada abriu o processo querendo a cadela, da raça buldogue francês, de volta. A situação é ainda mais incomum justamente por não se tratar de uma guarda compartilhada ou tutela de animais— que são casos que surgiram recentemente — mas sim, de anular a doação.
A história começou em março, quando, conforme relatado no processo, a advogada de Vacaria decidiu doar a buldogue, que se chama Bela. A buldogue estava com ela desde setembro do ano passado, contudo, como está descrito na ação, a advogada estava preocupada em deixar a cachorra sozinha por muito tempo no apartamento. Ela não teria muito tempo para ficar com Bela por conta dos compromissos profissionais.
Ao mesmo tempo, o processo descreve que a advogada levava Bela com frequência à pet shop e em conversas, a funcionária se tornou a candidata a adotar a buldogue.
A funcionária aceitou e passou a cuidar da cachorra com o filho, de 13 anos. Conforme o processo, cinco dias depois a advogada quis a devolução de Bela porque sentia falta da mascote. A família adotante, porém, respondeu que a buldogue já estava adaptada à nova casa e apegada ao menino, além de que o acordo entre as partes não teria previsto a possibilidade de devolução. Assim, o caso rumou à Justiça.
Durante o processo, foram rejeitados dois pedidos da advogada pela tutela de urgência, que seria ter a cachorra de volta antes mesmo de uma sentença. O juiz responsável, Gustavo Henrique de Paula Leite, concluiu que não concederia os pedidos, uma vez que Bela estaria sendo bem cuidada pela nova família e criou laço afetivo com o menino. Em imagens anexadas ao processo, o adolescente e a buldogue até aparecem dormindo juntos.
No processo, a advogada alega ainda que teria pedido que a funcionária da pet shop levasse Bela para vê-la com certa frequência, o que não teria sido cumprido e teria motivado a ação. A família, entretanto, diz que isso não foi combinado.
O advogado da funcionária da pet shop, Luciano Giacomelli, reforça que não existiu nenhum acordo de contrapartida. Giacomelli relata, ainda, que em conversas de WhatsApp, que estão no processo, a antiga dona teria enviado que não queria mais ver Bela para poder fazer o “desapego”.
“Para a família, está sendo uma situação desgastante. A cachorra chega a dormir junto com as crianças, dentro de casa. O que significa que ela está sempre bem limpinha, está sendo bem cuidada e está sempre brincando”, afirma o advogado.
A reportagem telefonou para a advogada, que afirmou não querer comentar uma situação particular.
As duas partes envolvidas no processo também não aceitaram divulgar imagens da buldogue.
O processo segue na Justiça em Vacaria, ainda sem prazo para uma sentença.
Judicialização é rara em casos como este
A advogada Patrícia Zart, que acompanha a causa animal em Caxias, relata que a judicialização para reverter uma adoção é rara. Geralmente, fora dos tribunais, o que se vê são casos em que organizações não governamentais (ONGs) e protetores recolhem, em comum acordo, novamente o animal adotado ou até que o adotante resolve devolver. É um contexto bem diferente do caso em Vacaria.
“Chegar a judicializar a situação é raríssimo. Até porque, infelizmente, ainda temos uma cultura em que o animal é um objeto, em que temos guarda sobre o animal e não que ele é um titular de direito, um ser que tem direitos a serem preservados. Talvez, por isso, até por uma questão cultural, que não ouvimos falar dessas questões”, comenta Patrícia.
A situação traz desafios para a Justiça. Como comenta a advogada, desde a Constituição Federal, o animal deixou de ser considerado um objeto, mas o tema ainda tem um tratamento novo. A advogada lembra, por exemplo, que a Lei Sansão, que aumenta a pena de maus-tratos a animais, foi criada apenas em 2021, após a morte violenta de um cachorro chamado Sansão em Confins (MG).
“Todos eles mereciam esse olhar apurado de que é um ser que sente fome, que sente frio, que sente dor e saudade. Esse cuidado mais apurado que deveria existir em relação aos animais. E não necessariamente que nós precisamos judicializar qualquer demanda. Se a saúde pública fosse preservada neste aspecto, se o Poder Público olhasse para isso, com conscientização nas escolas, com educação e com o cuidado com o animal na rua, tudo isso deixaria de ser culturalmente negligente e passaria a ser culturalmente acolhedor”, observa a advogada.
Além do caso que envolve a tentativa de reverter a adoção, a reportagem encontrou no portal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) apenas outros cinco casos envolvendo uma disputa por guarda de animal, entre 2020 e 2022. Porém, nas outras situações, as pessoas tentavam acordar uma guarda compartilhada, o que também mostra um surgimento de processos neste sentido.
Fonte: anda