— Odin! Odin!
Armada com uma bolsa a tiracolo recheada de folhetos, Adriana Garcia avançava como uma valquíria pelo Mãe Preta clamando por Odin. O pastor alemão havia sido visto naquele bairro popular de Rio Claro, cidade paulista a 175 km da capital, havia mais de um mês. Um cartaz com a foto do animal colado a um muro já perdera a cor, mas um sentimento vindo das entranhas dizia a Adriana que Odin continuava por ali, talvez acobertado atrás de portões de ferro, talvez abrigado nos confins de um lote rural, talvez vagando pela voçoroca de 600 metros de largura que parece prestes a engolir o bairro.
“A ideia é ir perguntando dele”, diz Adriana. Com ela, somos mais seis pessoas, todas atendendo ao chamado da fanpage Odin Força Tarefa, do Facebook. Depois de 45 dias, a empreitada para achar o pastor havia recrudescido, especialmente depois das chamadas na TV local sobre o sumiço do animal. Nas redes sociais, porém, o fervor por encontrar o Encantado Odin nunca esmoreceu — muito menos as chamadas no celular de Jorge Sasso, o tutor.
“Recebo uma centena de ligações por dia, das 6 da manhã à 1 da madrugada”, diz, mostrando as mensagens no WhatsApp, Messenger e Instagram. Eram, na imensa maioria, pessoas dispostas a ajudar. Mas houve quem tivesse tentado o golpe do pix, ameaçado a família ou jurado matar Odin com um tiro se Jorge não depositasse um valor considerável na conta do extorsionista. “Sabe quando ligam da cadeia dizendo que seu filho foi sequestrado? É a mesma coisa”, compara o tutor. “E não tem jeito: a gente cai.”
Escapada pela garagem
Odin desapareceu no dia 11 de novembro, sexta-feira, depois que Kênia Lira Sciascio, mulher de Jorge, abriu o portão eletrônico de casa quando chegou da aula de inglês. Entrou com o carro, fechou o portão e, diante da casa às escuras, entendeu que o marido e o cachorro tinham saído para correr, como de hábito. Não demorou para Jorge chegar sozinho, estranhando a ausência do fiel escudeiro. Vasculharam a casa e sondaram com o olhar Lola, Luque e Sophie, o trio de yorkshires, mais Nick, o spitz alemão, para saber se a matilha dava pistas do animal. Nada.
Câmeras da casa mostraram que o pastor saiu na hora em que o carro entrou, sem que Kênia percebesse. Enquanto ele urinava num poste ali perto, o portão fechou. Odin voltou, deu de cara com o portão cerrado e urinou novamente no poste. Voltou ao portão: fechado. Foi até a esquina e fez xixi numa árvore morta. Retornou, e o portão nada de abrir. Então subiu a rua e foi-se para além do bairro da Bela Vista, num galope atrás de Jorge ou não se sabe bem do quê.
Depois de postar sobre a fuga, o casal recebeu pelo Facebook uma série de “Eu vi o pastor no paredão da Fepasa! Eu vi cruzando a linha de trem!” Foram seguindo as pistas e avançando no perímetro, em vão. Dois dias depois, alguém disse tê-lo visto na tal voçoroca. Diante daquele buraco de 25 metros de profundidade e à beira de uma erosão interna, Jorge recebeu uma ligação avisando que Odin estaria perto do condomínio Residencial Florença, a poucos metros de uma propriedade rural.
Cão avistado
“Parei o carro na estrada e vi um cão em cima de um barranco, sentado ao lado de uma cerca, olhando para a rodovia”, lembra Jorge. Foi o tutor gritar “Odin!” para o cachorro correr — na direção contrária. Jorge galgou o barranco, passou o arame farpado e encontrou o animal a uns 100 metros, com as orelhas em riste. O tutor respirou e sentou no solo. Então chamou: “Vem, Odin!”.
O cão veio como um tiro. Jorge sabia que, naquela posição, cairia para trás com a impetuosidade do cachorro. Levantou-se para recebê-lo de peito aberto. “Quando eu cresci, ele deu meia volta. Ainda parou a uns 50 metros, passou correndo do meu lado e voltou a entrar no mato”, diz Jorge, devastado. O casal invadiu a mata fechada usando a lanterna do celular, mas à toa. Odin tinha se evaporado no breu.
No dia seguinte, Jorge e Kênia bateram aquela mata por cinco horas, explicando a situação aos sitiantes e deixando contato. Também falaram com um funcionário da concessionária que cuida da rodovia, pedindo para serem avisados caso houvesse um acidente envolvendo um pastor. Voltaram cheios de carrapato e com a certeza de que não se bastavam.
Contrataram uma empresa especializada em encontrar animais perdidos. O pessoal chegou com drone e um cão farejador de nome Barão, que cheirou um retalho da cama de Odin e partiu como um foguete em direção ao local varrido por Jorge. A equipe rastreou todo o pedaço por oito horas. Achou pegadas e alguns pelos. Mas Odin que era bom, nada.
Em ‘modo fuga’
Jorge aprendeu com a equipe que, quando perdidos, os animais se comportam fora do padrão. “Estão no modo fuga”, reproduz ele. Muitos não reconhecem o tutor pela voz nem pelo olfato, tampouco se deixam pegar. Pior quando alguém cresce de tamanho na frente deles. O 1,76 metro de Jorge pode ter parecido um monstro — mesmo para Odin, que, em pé, quase parelha seus olhos com os do tutor.
Porque Odin é assim: um gigante. Da ninhada de três nascidos da cadela Inca, ele era o maior. Chegou à casa de Jorge, professor de educação física, e Kênia, médica de família, com 45 dias, 5 kg, cara preta e pelagem escura. “Já era descomunal”, reconhece o tutor. O casal tinha gostado da série Vikings, da Netflix, e pôs o nome no filhote.
Odin teve aulas de adestramento dos quatro meses aos dois anos. Acompanhava Jorge nas corridas, nos pedais, na musculação. Ainda que meio arisco, convivia com as visitas humanas. O mesmo não acontecia com outros cachorros na rua, nos quais avançava se Jorge não o contivesse na guia. Odin não era castrado e demonstrava um amor platônico por Lola, a yorkshire de laços coloridos, que jogava seu charme para o grandalhão.
Todos os cachorros da casa, incluindo Odin, são chipados. O chip é subcutâneo, do tamanho de um grão de arroz. Se o veterinário escaneá-lo, aparecem informações do animal. Além disso, o pastor carregava uma coleira com uma medalha que trazia um QR Code. Quem apontasse uma câmera de celular para o código saberia o nome do cão, do tutor e o telefone para contato. Mais que isso: o casal descobriria que a leitura fora feita porque o GPS enviaria para o e-mail de Jorge a localização do curioso.
‘Vou dar um tiro na cabeça dele’
Por 45 dias desde o desaparecimento de Odin, ninguém tinha acionado o QR Code. Tinham, sim, tentado enredar o casal em golpes. “Um falou que tinha pegado o cachorro em troca de dívida de droga, mas não queria ficar com animal roubado”, conta o professor. Então perguntou onde Jorge morava para fazer a entrega. No desespero, o professor deu o endereço, mas pediu uma prova de que se tratava de Odin.
“Aí a pessoa começou a me xingar e ameaçar, falando que não era paparazzo, que sabia onde eu morava, que ia pegar minha família, dar um tiro na cabeça do cachorro”, lembra o casal, que por um triz não enviou por pix metade do valor pedido.
Não muito tempo depois, um homem marcou a entrega do cão numa praça de Rio Claro, dizendo que a mulher e o filho dele estavam levando o pastor. Apesar de Jorge oferecer gratificação nos cartazes que espalhou pela cidade, não se mencionou a recompensa. Mas, quando Jorge revelou o modelo do seu carro para que se reconhecessem, ouviu a ameaça: “Estou na sua bota, mande o pix agora senão mato sua família”. Jorge desligou, mas ainda receberia mais umas 20 chamadas do gênero.
O casal ressalta, porém, que a maioria dos contatos é de pessoas empenhadas em achar Odin. Há quem ligue de Minas e Pernambuco, por exemplo, perguntando se Jorge foi atrás da última pista compartilhada por ONGs e voluntários. “Acho que já mapeei todos os pastores alemães da cidade”, diz ele, não sem antes lembrar que a repercussão da história por vezes desgasta tutores de pastor que não conseguem mais passear em paz com seus cães.
Um homem reclamou para Jorge que até a polícia o tinha abordado. Uma mulher desabafou por telefone: “Não aguento mais, as pessoas me acusam, querem tomar o cachorro de mim, mas eu não roubei o seu cachorro, mesmo porque o meu é fêmea!”
Ossada na mata
Na segunda-feira, 26 de dezembro, às 17h29, o e-mail de Jorge recebeu a informação de que o QR Code havia sido lido. Quase ao mesmo tempo, uma mulher ligou dizendo que o marido tinha encontrado a ossada de um animal numa mata. Sobre os restos mortais, acharam a coleira.
Em choque com a notícia, Jorge decidiu ir ao local na manhã do dia seguinte. Tratava-se de uma mata na altura do km 59 da Wilson Finardi, principal eixo viário entre Rio Claro e Araras, não muito longe de onde ele havia visto Odin pela última vez. Após margear um canavial, entramos na mata. Não demorou para vermos, debaixo de uma manta de espinhos finos e galhos entrelaçados, o crânio pontudo de um animal, outros ossos espalhados e uma manta de pelos pretos. Por cima da pelagem, jazia a coleira prateada de elos compridos.
Usando luvas, Jorge colheu as peças e as dividiu em dois sacos pretos. No caminho de volta ao carro, mais um crânio, desta vez de um javaporco, híbrido de javali com porco doméstico que continua a devastar plantações no Brasil, e que por ali ficou.
Jorge e Kênia decidiram fazer exame de DNA do material em Jaguariúna, a cerca de uma hora de Rio Claro, depois de colher o sangue de Inca, a mãe. O resultado sai, no mínimo, em 30 dias. Antes, uma veterinária com especialização em radiologia formada na USP avaliou o material encontrado na mata. Seria de um pastor alemão macho, de um ano e meio a cinco anos de idade, alto. Odin tem 70,5 cm de altura, acima da média de 60 cm da raça, e fará três anos em fevereiro. O chip não foi achado no matagal.
A decomposição rápida foi vista como possível, já que há predadores na área, como os próprios javaporcos, além de uma onça-parda, flagrada com dois filhotes na região.
Nas redes sociais, a notícia da ossada causou muitos emojis de choro. Mas há quem não arrede pé da busca. “Galerinha, esse é o ODIN, menino muito amado já não só pelos tutores, mas por todos nós também”, escreveu Marcinha Ferrari Maia, idealizadora do AICA (Apoio Independente a Causa Animal), voluntária das mais influencers em Rio Claro, logo abaixo de uma foto do pastor.
“Odin ainda não conseguiu voltar pra casinha e, enquanto não chegar o DNA de uma partícula da ossada que encontraram, com sua coleirinha do lado, vamos pedir a Deus pela sua vida e seu retorno ao lar! A palavra sempre será ESPERANÇA.”
Fonte: UOL