Junho amanhece como um grito colorido em meio à neblina da intolerância. É o mês da Diversidade Sexual, tempo em que as ruas se pintam de arco-íris e as vozes ecoam por direitos, por reconhecimento e, acima de tudo, por existência. Mas enquanto o mundo celebra o orgulho de ser quem se é, em Franca, interior de São Paulo, a política segue virando o rosto. A Câmara Municipal rejeitou um projeto de resolução, da Vereadora Marília Martins, que visava proibir qualquer forma de discriminação por gênero, orientação sexual, raça, etnia, deficiência ou religião no regimento interno da Casa. Uma proposta que, em teoria, apenas reafirmaria o que a Constituição já garante. Mas o que parecia óbvio foi descartado com frieza: nove votos contrários, cinco favoráveis. A alegação de um dos vereadores foi simbólica — e reveladora: “Não tem pauta feminista aqui.”
Não há sutileza nessa recusa. Quando um espaço público nega a si mesmo a tarefa de proteger minorias, ele escolhe, ainda que silenciosamente, pelo lado da exclusão. E não se trata de retórica ou sensacionalismo. O que está em jogo é o direito à dignidade de pessoas que, historicamente, são alvo de violência e silenciamento. A fala do vereador Fransérgio Garcia, que argumentou que “a Constituição já garante a igualdade”, soa como uma cortina de fumaça institucional: porque a igualdade prescinde do tratamento desigual segundo as necessidades desiguais de cada grupo minoritário, ou seja, um tratamento isonômico. A própria cidade viu as denúncias de crimes contra LGBTQIA+ crescerem em mais de 200% nos últimos anos. O problema não é a falta de leis — é a recusa em colocá-las de pé dentro das estruturas de poder.
Neste cenário, o mês de junho não pode ser só festa. Deve ser, mais do que nunca, um manifesto vivo. As bandeiras coloridas que tremulam nas ruas não são decoração: são marcas de sobrevivência. São respostas ao medo, ao preconceito, à exclusão. São também símbolos de arte, de luta e de memória. Como canta Lady Gaga em “Nascida Assim”, um dos hinos mais emblemáticos da comunidade LGBTQIA+: “Não se esconda no arrependimento, apenas ame a si mesma e tudo estará certo.” Amar-se e existir, em muitos territórios deste país, é uma batalha diária — e é por isso que a arte é tão vital.
A arte resiste onde a política falha. E não é por acaso que obras distópicas como O Conto da Aia, de Margaret Atwood, voltam com força nestes tempos sombrios. Na teocracia fictícia de Gilead, mulheres perdem seus direitos, identidades são apagadas e qualquer desvio da norma é punido com brutalidade. Parece exagero? Pensemos bem: quando um parlamento barra a possibilidade de garantir não-discriminação dentro do seu próprio funcionamento, está dizendo, na prática, que prefere manter-se neutro diante da violência. E neutralidade, nesse contexto, é cumplicidade. A diferença entre Franca e Gilead talvez seja só a ausência de capas vermelhas nas galerias da Câmara.
O cinema também denuncia. Em Moonlight, dirigido por Barry Jenkins, o amor entre dois homens negros se desenrola com delicadeza e dor. A beleza do filme está em mostrar o que a sociedade tenta esconder: que existências LGBTQIA+ negras e periféricas também são poesia. Também merecem afeto, futuro, protagonismo. Quando uma Câmara Municipal recusa sequer discutir discriminação, ela decide por apagar essas histórias. Ela age como a mão invisível que silencia um beijo, apaga um grafite, impede um abraço em praça pública.

Lama da Vale retirada do leito do Rio Paraopeba, terra de Brumadinho, resina, verniz e tinta acrílica sobre tela (2019)
Nas artes visuais, essa resistência se materializa em muros, telas e instalações. Os trabalhos de Mundano, por exemplo, transformam o espaço urbano em território de questionamento político, fazendo dos seus traços um grito por visibilidade e justiça social. E se a rua vira galeria, é porque dentro dos palácios políticos não há espaço para as vozes dissidentes. Em Franca, onde o parlamento silencia, o muro pode falar.
É impossível não lembrar também da literatura de testemunho. O Diário de Anne Frank, embora narrando outra perseguição, nos ensina que a violência institucionalizada começa com pequenas negações: negar a existência, negar a palavra, negar o direito de ser. Em muitos contextos brasileiros, ser LGBTQIA+ ainda é viver escondido, como Anne no sótão. E o que se viu na Câmara de Franca é mais um cadeado simbólico nesse esconderijo forçado.
E se a literatura aponta feridas, a música transforma dor em potência. Álbuns como Chromatica, de Lady Gaga, são mais do que obras pop: são espaços sonoros de cura e pertencimento. “Não sou perfeita, mas sou digna”, ela canta, lembrando que a luta por dignidade não exige perfeição — exige coragem. Exige também instituições que reconheçam e protejam essa dignidade, e não que a deixem de lado por questões de conveniência política ou ideológica.
Junho, portanto, não é apenas um mês no calendário. É um chamado. É um tempo em que arte e política devem caminhar lado a lado, ou então caminharemos para trás. Em um país onde a cada 36 horas uma pessoa LGBTQIA+ é assassinada, não há espaço para omissão. E se os parlamentos se calam, que as colunas de arte gritem. Que as palavras se tornem farpas contra o descaso. Que cada poema, pintura ou canção seja um ato de insurgência.
Negar a pauta da diversidade é, no fim, negar a própria humanidade. É alimentar a distopia. É construir uma Gilead a céu aberto, onde os gritos são abafados pelo som de martelos legislativos. Mas enquanto houver arte, haverá fôlego. Enquanto houver quem escreva, cante, pinte e filme, haverá resistência. Que Franca não seja o espelho do Brasil — mas sim o alerta. E que junho não seja só festa: seja revolução.
PARA VER: O Conto da Aia (The Handmaid´s Tale) (criação de Bruce Miller, 2017-, disponível na Globoplay, Paramount+ e Amazon Prime Video)
PARA OUVIR: Filhos do Arco-íris (interpretada por Preta Gil) – disponível no YouTube
PARA LER: Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT, de Renan Quinalha, Editora Schwarcz, 2021 (disponível no Mercado Livre).