Comparado por críticos e estudiosos a grandes nomes da poesia, como Castro Alves e Carlos Drummond de Andrade, Carlos de Assumpção é ícone da representatividade da cultura e da luta da população negra brasileira contra o racismo e todas as suas formas de preconceito e opressão. Considerado um poeta invisível, por não ser conhecido do grande público, a obra do artista transcende tempo e espaço e expõe em versos e prosas a dura realidade dos negros no país. Aos 94 anos, o “poeta griot” tem sua vida e obra homenageadas em um documentário de três episódios, produzido pelo Sesc Ribeirão Preto e lançado no canal do YouTube (YouTube.com/sescribeirao).
“A raça negra é tão espezinhada, posta para trás, tem que lutar, e muito, para vencer na vida. É uma vida de luta. O negro brasileiro tem que lutar muito para conseguir alguma coisa. E, mesmo conseguindo alguma coisa, ainda tem que vencer barreiras. Sempre. Mas a gente tem um espírito de luta, desde a infância”, diz Carlos de Assumpção, no vídeo.
Para Vitor Hugo Vieira, programador de Turismo, Literatura e Diversidade do Sesc Ribeirão, o lançamento do documentário é uma justa homenagem e reconhecimento à contribuição que Carlos de Assumpção deu, e ainda dá, ao engrandecimento das artes literárias e a cultura como um todo no país. “Nada, a não ser o racismo estrutural instituído no Brasil, poderia justificar o apagamento continuado deste poeta até seus 94 anos”, diz.
Consagrado como o maior poeta negro brasileiro vivo, Carlos de Assumpção nasceu em 1927 em Tietê (SP). Mudou-se para Franca, no interior de São Paulo, em 1969, adotando a cidade como ponto de resistência e produção para sua vasta obra literária. É neto de Cirilo Carroceiro, que deixou de ser escravo pela Lei do Ventre Livre, assinada pela Princesa Isabel e promulgada em 28 de setembro de 1871, libertando todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir de então.
O avô, analfabeto, era quem contava histórias testemunhais sobre a escravidão, e servia de contraponto para o garoto que lia uma história diferente nos livros didáticos, uma versão imposta por uma narrativa eurocêntrica dos processos de colonização das Américas. Entendedor da força da palavra, o poeta é uma voz forte na luta contra o racismo, uma referência na obra de resistência negra no Brasil.
Apesar de ser um decano da literatura afro-brasileira, Carlos de Assumpção estreou em publicação individual somente em 1982, aos 55 anos, com o livro “Protesto”. Nas décadas seguintes lançou mais quatro volumes de poemas (“Quilombo”, 2000; “Tambores da Noite”, 2009; “Protesto e Outros Poemas”, 2015; “Poemas Escolhidos”, 2017). Já a obra “Não Pararei de Gritar” reúne sua poesia completa: os cinco livros mais outros nove poemas inéditos, escritos entre 2018 e 2019.
“Saibam que minha luta está enraizada na luta dos meus avós. E também saibam que minha luta não é só minha. É luta de todos nós. Ontem lutaram comigo nos quilombos índios e brancos pobres, irmãos explorados também. Meu quilombo de hoje não é diferente dos quilombos do passado. Nas lutas contra a injustiça. Nas lutas contra a discriminação. Ninguém pode ser injustiçado e discriminado. Quem ame realmente a liberdade. Quem realmente seja irmão. Quem tenha realmente amor no peito. Me dê a mão. Junte-se a minha voz. E meu quilombo de hoje é igual aos quilombos do passado. É quilombo de todos os oprimidos. É quilombo de todos os explorados. É quilombo aonde todos são bem-vindos. É quilombo de todos nós.”
É com versos como este, do poema “Minha Luta”, declamado no documentário, que o poeta griot expõe seus sentimentos. Expressa a verdade sobre o preconceito velado e os olhares obscuros que a sociedade lança sobre a população negra, sempre com desconfiança e prejulgamento.
“A poesia, para mim, em primeiro lugar é um desabafo. É abrir os olhos das pessoas para os problemas que nos cercam. É incentivo, é tudo, é vida”, diz o poeta, no vídeo.
Segundo Vitor Hugo, os griots (contadores de histórias, músicos, conselheiros, oradores, entre outros) são considerados personagens fundamentais das civilizações africanas. Eles têm o compromisso de preservar e transmitir histórias, fatos históricos e os conhecimentos e as canções de seu povo na África Ocidental, mantendo a tradição de uma comunidade viva, perpassando gerações para a sua ancestralidade.
“Consideramos o escritor Carlos de Assumpção um griot, que se inspira nas histórias contadas pelos seus antepassados para escrever seus textos e poemas. Histórias do período escravocrata e do pós-abolição. Esse contexto histórico deixou marcas tão profundas que são sentidas até hoje, no preconceito e na discriminação racial, fato que motiva ainda mais a luta e militância do poeta no combate ao racismo”, diz Vitor Hugo.
Como professor, Carlos de Assumpção é um defensor da educação. Ele luta para que seja cumprida a lei 10.639/03, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, na qual foi incluída no currículo escolar a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História, alterada pela Lei 11.645/08, que inclui “História e Culturas Indígenas”.
“A luta do poeta, que transparece na sua fala e suas obras, é contra essa legitimação de nossa sociedade como elitista e excludente, que menospreza a história dos africanos, afrodescendentes e indígenas. Mesmo com a grandeza da sua obra, ele é considerado um poeta invisível, uma vez que seu trabalho não é conhecido do grande público. Com 94 anos, ele usa os meios digitais para ajudar a espalhar suas palavras e poesias, enviando para seus contatos no WhatsApp um poema ou trechos de suas obras”, diz Vitor Hugo.
O vídeo
O documentário “Carlos de Assumpção, o poeta griot” lançado pelo Sesc Ribeirão tem como objetivo o registro da vida e realizações do poeta, suas produções e trabalhos até o momento. A ideia da série era acompanhar cenas do cotidiano do autor, mas devido às restrições impostas pela pandemia, o roteiro foi adaptado.
“Para gravar durante a pandemia, a equipe seguiu todos os protocolos de segurança e com acesso remoto. Os equipamentos foram enviados para a residência do escritor e as captações contaram com o auxílio da família – que reside com ele, e com o apoio à distância do técnico audiovisual”, explica Vitor Hugo.
O resultado é um monólogo em formato intimista, recheado de poesia e música com batuque, com uma linha narrativa a partir da expressão comumente utilizada por Carlos de Assumpção: “Quando o poeta acorda”. São opiniões sobre racismo, família, escravidão, democracia, educação, juventude, amor, samba, candomblé, sonhos e futuro, histórias da sua vida e poesias declamadas, como a “Zé Tambor”, descrita abaixo.
“Ei, você aí, Zé Tambor. Parado na frente do cinema. Na frente do banco. Na frente do supermercado, Zé Tambor. Cuidado. A injustiça ronda as ruas da cidade, Zé Tambor. A morte é irmã gêmea da vida, Zé Tambor. Lá vem o carro de fogo. Lá vem os homens de olhos de fogo. Com as armas de fogo nas mãos. Cuidado, Zé Tambor. Cor suspeita de carvão”.
Serviço
Documentário ‘Carlos de Assumpção, o poeta griot’
Onde assistir: canal do Sesc Ribeirão no YouTube – https://www.youtube.com/playlist?list=PLSQPgUA8X-xxjp5C4h0pSPBlSe-UCy9pH
FICHA TÉCNICA
Realização: Sesc Ribeirão Preto
Apresentando: Carlos de Assumpção
Participação percussão: Luciano Soares
Agradecimento: Lourdes Nascimento
Direção: Leo Otero
Imagens e entrevista: Leo Otero
Assistência e roteiro: Sheila Brandão
Iluminação: Michel Masson
Edição e legendas: Raíza Ferreira
Ilustração: Lucas Frischa
Animação: Willian Calegaro
Fernanda Martins/Benu Comunicação