A ideia de amizades de baixa manutenção tem ganhado popularidade nos últimos tempos, sendo frequentemente associada à leveza e à ausência de cobranças excessivas. No entanto, há um limite tênue entre essa concepção e a negligência nas relações interpessoais.
Amizades, como qualquer laço humano, necessitam de cultivo e cuidado para se manterem saudáveis e significativas. A crença de que amizades verdadeiras sobrevivem sem qualquer esforço ignora a complexidade dos vínculos humanos e pode levar a um esvaziamento das conexões sociais.
O conceito de amizade está intrinsecamente ligado aos direitos humanos, especialmente ao direito à dignidade e ao reconhecimento mútuo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos enfatiza a importância da convivência harmoniosa e do respeito entre os indivíduos, valores que também permeiam as relações de amizade.
Em 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas criou o Dia Internacional da Amizade, celebrado em 30 de julho, celebrando a ideia de “povos, países, culturas e indivíduos inspirando esforços de paz e construindo pontes entre comunidades” (ONU, jul/2020).
Quando se assume que uma amizade pode subsistir sem investimento emocional ou contato genuíno, corre-se o risco de transformar esse vínculo em algo meramente utilitário, em que a presença do outro só se faz necessária em momentos convenientes.
A literatura oferece inúmeras reflexões sobre a importância do cultivo das amizades. Em “O Pequeno Príncipe“, de Antoine de Saint-Exupéry, a raposa ensina ao protagonista que cativar alguém exige tempo e dedicação, e que a amizade se fortalece pelo compromisso mútuo. Esse ensinamento contrapõe a ideia de que a amizade verdadeira independe de contato ou atenção, evidenciando que o afeto se constrói no encontro e na partilha.

No cinema, obras como “Conta Comigo” (1986), dirigido por Rob Reiner, ressaltam como a amizade é forjada na presença e no apoio mútuo. O filme, baseado em um conto de Stephen King, mostra um grupo de amigos que enfrenta desafios juntos, fortalecendo seus laços ao longo da jornada. A narrativa sugere que a amizade não é apenas uma questão de afinidade, mas também de comprometimento e solidariedade.
Não é possível falar de amizade sem citar “O Auto da Compadecida 2“, de Guel Arraes e Flavia Lacerda, que apesar das falhas no roteiro, demonstram que Chicó e João Grilo, apesar da distância e da temida ideia de separação, nutriram entre si a hipótese de uma amizade que rompe o tempo e se fortalece com ele, ainda que haja um impedimento certo de contato diário.
Isto reforça a ideia de que a amizade vai além da mera coexistência e exige interação significativa. Essa perspectiva desafia a noção de que a amizade pode ser completamente desprovida de esforço e manutenção.
Crer que amizades verdadeiras não precisam ser cultivadas é ignorar a necessidade humana de pertencimento e afeto. Em um mundo cada vez mais digitalizado, em que a comunicação muitas vezes se reduz a interações superficiais, é fundamental lembrar que amizades autênticas demandam presença, mesmo que em pequenos gestos. Não se trata de exigir tempo excessivo do outro, mas de reconhecer que vínculos se fortalecem na troca, no diálogo e na demonstração de interesse genuíno.
O conceito de baixa manutenção não deve ser confundido com ausência de cuidado. Uma amizade pode ser flexível e compreensiva sem se tornar negligente. O equilíbrio entre espaço e dedicação é essencial para que a relação continue significativa ao longo do tempo. O desafio, portanto, é encontrar formas de manter os laços vivos sem sobrecarregar ou cobrar excessivamente o outro, mas sem cair na ilusão de que as amizades podem florescer no abandono.
Assim, é preciso ressignificar a ideia de amizade de baixa manutenção, compreendendo que vínculos verdadeiros precisam ser nutridos para não se esvaziarem. Como ensinam as artes e a literatura, a amizade é um compromisso que envolve afeto, respeito e presença, e é nesse cultivo mútuo que reside sua verdadeira força.
PARA VER: O Auto da Compadecida 2 (2024, Guel Arraes e Flavia Lacerda, na Prime Video)
PARA OUVIR: Canção da América, grandioso Milton Nascimento, álbum Journey to Dawn, 1979 – “Amigo é coisa pra se guardar, do lado esquerdo do peito, dentro do coração!“
PARA LER: O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry, HarperCollins, 2018): segundo minha professora Simone, da 5ª série, é uma obra para se ler mais de uma vez durante a vida, pois em cada momento ela trará um significado novo…