O Brasil ovaciona a premiação merecida de Fernanda Torres, no Globo de Ouro, como Melhor Atriz em filme de drama, conquistado neste último domingo (5), pela interpretação de Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, ex-deputado federal e engenheiro civil, que foi deposto após o Golpe de 1964 e que morreu nas dependências de um quartel militar no Rio de Janeiro, após ser torturado.
Muito mais do que uma premiação pela crítica consagrada, o Globo de Ouro faz justiça com a dramaturgia brasileira, que anseia por este reconhecimento desde 1999, quando Fernanda Montenegro disputou o prêmio com “Central do Brasil”, porém não trouxe a estatueta como Melhor Atriz.
A obra que estampa grandioso feito: “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles e que permaneceu na liderança de várias redes de cinemas brasileiros, com espectadores que, assim como eu, sentiram-se inebriados pela atuação de Fernanda Torres, ao mostrar uma Eunice Paiva que soube transmitir mensagem por um simples olhar.
“Ainda estou aqui” nos traz uma dupla memória que pretendo compartilhar com nossos leitores nessa coluna. Ao mesmo tempo em que “Ainda estou aqui” revela uma mãe e esposa forte, pilar de uma família que sofreu com os brutais crimes cometidos na ditadura de 1964, que se nega a fazer-se triste para uma fotografia de família – mesmo despedaçada por dentro -, o filme é uma lembrança de que o fantasma da ditadura ainda nos ronda, pois ele ainda está aqui, no nosso meio.
Da mesma forma que Eunice Paiva se fazia presente para sua família enquanto buscava explicações para o desaparecimento de Rubens Paiva, dizendo repetidamente, ainda que em silêncio, que ela ainda estava ali, por todos e pela memória de seu esposo, os algozes que a torturaram também encontram-se presentes na nossa sociedade, na propagação de ideais antidemocráticos e na tentativa de revivescer a angústia.
Relaxei na poltrona do cinema por poucas ocasiões durante as 2h17min de exibição daquela película que, a par de histórica, me convidava a relembrar fatos atuais que nos aproximaram tanto de viver novamente em um regime de exceção democrática.
Não precisamos ir muito longe para saber que esse maldito fantasma da ditadura e a podridão dos seus porões “ainda estão aqui” no Brasil. Estamos há exatos dois dias do aniversário da tentativa de golpe sofrido na Esplanada em 8 de janeiro de 2023, onde criminosos invadiram a sede dos Poderes em Brasília numa tentativa de subverter nosso regime democrático, ao pretexto de estarem livrando o Brasil de sua própria escolha, sufragada nas urnas meses antes.
Essa dupla memória que o filme premiado nos traz é um convite à vigilância constante pois pequenos atos, como comemorar e homenagear figurões torturadores confessos, passam a ter um significado gigante num contexto de um país que sofre uma tentativa de golpe por uma minoria que julga poder subverter a legítima escolha política da maioria dos seus cidadãos.
Que o olhar vigilante de Eunice Paiva, tão bem interpretado por Fernanda Torres, na cena que – aposto! – fez muitos brasileiros compreenderem o peso que essas famílias passaram naquele triste período, nos faça também vigilantes do regime democrático que, como teria dito Winston Churchill, é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais formas.
Sentinelas da democracia, ainda estou aqui.
PARA VER: Ainda estou aqui (2024, Walter Salles, 2h17m, na Globoplay em breve)
PARA OUVIR: Marcha fúnebre (Compositor Fantasma, Gabriel Serapicos – Álbum Noite do Dia das Bruxas, 2018)
PARA LER: As ilusões armadas: Ditadura Envergonhada (Élio Gaspari, Editora Intrínseca, vol. 1, 2014)
Neste texto de estreia no Portal FNT, queremos inaugurar nossa coluna – HUMANARTE – para iniciar nosso espaço que conterá muito sobre arte, literatura, música e cultura em geral, sempre aliado a uma pauta relativa a direitos humanos e ao direito em suas múltiplas formas. E nesse casamento entre cultura e direito queremos que através das artes possamos refletir sobre nosso lugar no mundo.
DENY EDUARDO é Subprocurador Jurídico da Prefeitura de Morro Agudo/SP, advogado em Franca/SP. Escreve poemas e é fazedor de cultura, foi membro do Conselho Municipal de Política Cultural (CMPC) de Franca-SP, de 2023 a 2024.