A minissérie Adolescência, da Netflix, expõe, com crueza e profundidade, os desafios enfrentados pela justiça criminal na obtenção de provas e na busca por uma condenação justa. O enredo, centrado na investigação de um crime brutal envolvendo jovens e contra jovens, destaca o papel da polícia e a forma como as provas são reunidas.
No cerne dessa narrativa, está Jamie, cujo tratamento durante todo o procedimento levanta questões fundamentais sobre direitos humanos e garantias processuais. A produção não apenas expõe falhas e acertos da investigação policial, mas também convida o espectador a refletir sobre os limites entre justiça e abuso institucional.
Dentre as várias camadas de discussão possíveis sobre a rica produção cinematográfica, tratamos neste ensaio sobre os aspectos relacionados ao processo pelo qual Jamie é acusado e o seu tratamento durante este percurso até sua declaração como culpado.
A abordagem da polícia na minissérie contrasta com a realidade brasileira, onde um alto número de crimes permanece sem solução devido às fragilidades na investigação. Dados do Instituto Sou da Paz revelam que, em 2019, apenas 37% dos homicídios no Brasil foram esclarecidos. Estados como o Rio de Janeiro apresentam índices ainda mais alarmantes, com apenas 16% dos casos solucionados. A deficiência de peritos e a precariedade dos laboratórios de análise criminal são entraves constantes. A falta de estrutura e de um aparato estatal eficiente impede a rápida resolução de crimes graves, perpetuando a impunidade e a desconfiança na justiça.
O modo como Jamie é tratado também reforça a discussão sobre a presunção de inocência e a dignidade humana. A todo tempo Jamie é lembrado sobre suas garantias processuais, sobre a possibilidade de contar com a presença de seu representante legal, além do sistema de justiça buscar constantemente compreender se Jamie tem exata compreensão do que tem acontecido com ele, para determinar sua responsabilidade pelo crime do qual é acusado.
Todavia, sua exposição midiática e a pressão psicológica exercida pela polícia em alguns momentos evocam episódios reais de erros judiciais que resultaram em condenações injustas. Em um paralelo, no Brasil, a violência policial durante as investigações ainda é uma realidade alarmante, principalmente entre jovens negros e pobres. A tortura e a coação ilegal de depoimentos são frequentemente denunciadas, contrariando a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU.
Aspecto relevante é que em Adolescência as provas colhidas são evidências tão fortes de que o crime aconteceu e que Jamie é seu autor, que nos indica que não é necessário mais do que inteligência policial e investigação séria e comprometida para elucidar um crime. Cerca de horas após o crime, pelo empenho policial e coordenação entre os órgãos do sistema de justiça está ao menos prefacialmente esclarecido que Jamie é o responsável, levando-o ao recolhimento próprio a adolescentes.
A ausência de uma investigação imparcial e tecnicamente qualificada impacta diretamente na efetividade da justiça, o que pode ser observado em obras como O Processo, de Franz Kafka. Nesta narrativa, o protagonista Josef K. se vê enredado em um sistema judicial opressor e labiríntico, sem acesso claro às acusações contra ele e sem garantias reais de defesa. A obra serve como uma metáfora atemporal das arbitrariedades e da burocracia desumanizante que podem permear sistemas judiciais falhos.
Na cinematografia, Olhos que Condenam (When They See Us), dirigida por Ava DuVernay, retrata as falhas do sistema criminal norte-americano na criminalização precoce de cinco jovens negros acusados injustamente de um crime brutal no Central Park. A minissérie evidencia como preconceitos raciais e falhas investigativas podem levar a condenações errôneas, destruindo vidas e corroendo a confiança pública nas instituições de justiça.
As artes visuais também se tornam um campo de denúncia e reflexão sobre o tema. O artista britânico Banksy, conhecido por suas obras de teor político e social, frequentemente aborda a violência policial e a desigualdade no sistema de justiça. Em uma de suas obras, intitulada “Police Kids“, Banksy retrata crianças brincando sob a vigilância de policiais, uma crítica à presença opressiva das forças de segurança na vida dos jovens.

Diante desses pontos, a minissérie Adolescência transcende a narrativa ficcional e se estabelece como uma crítica ao sistema de justiça, reforçando a necessidade de garantias processuais sólidas. É evidente que a investigação em Adolescência está distante do que ocorre no Brasil, em muitas localidades, parcas da presença estatal qualificada.
O respeito aos direitos humanos não deve ser visto como um obstáculo à justiça, mas sim como um caminho para evitar erros judiciais e fortalecer a credibilidade institucional. No Brasil, onde a investigação policial ainda enfrenta desafios estruturais e éticos, o paralelo traçado pela minissérie revela não apenas diferenças processuais, mas também um debate urgente sobre a forma como a sociedade lida com a justiça e a punição.
A arte tem o poder de escancarar essas falhas e de promover discussões que transcendem o entretenimento. Adolescência não é apenas uma história sobre um crime juvenil; é um chamado para que a justiça seja exercida com responsabilidade, empatia e respeito às normas internacionais de direitos humanos.