Se houvesse uma galeria dos horrores legislativos, o Projeto de Lei 2159/2021 ocuparia lugar de destaque, emoldurado como uma obra-prima do retrocesso ambiental. Disfarçado de “modernização do licenciamento ambiental”, o PL é, na verdade, uma carta branca para a devastação.
O PL prevê novos tipos de licenças ambientais. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC) se baseia apenas na autodeclaração do empreendimento de que cumpre regras ambientais, dispensando estudos prévios com flexibilização de regras para empreendimentos com potencial poluidor. O licenciamento poderia ser concedido mesmo para áreas sensíveis, sendo o monitoramento feito por amostragens, sem necessidade de fiscalização direta.
Já a Licença Ambiental Especial (LAE) é uma verdadeira loteria ambiental, dispensando análises baseadas na ciência e na discricionariedade técnica, para ser concedida por meio de um Conselho de Governo, que tomaria decisões políticas para projetos considerados “estratégicos”.
Estes vislumbres legislativos são capazes de demonstrar como o PL demonstra pilares que garantem, minimamente, a proteção dos nossos biomas, com potencial de esvaziar o poder de órgãos técnicos como o ICMBio e de converter o processo de licenciamento em um balcão de negócios, onde critérios políticos e econômicos sufocam qualquer traço de responsabilidade ambiental. Um escárnio legislativo que não apenas afronta a Constituição, mas zomba do futuro.
E é preciso dizer, sem rodeios: trata-se de um projeto inconstitucional. A Constituição de 1988 não é uma carta de intenções. Ela é um contrato social que assegura, no artigo 225, o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse direito não é uma concessão do Estado nem uma moeda de barganha no jogo político; é cláusula pétrea dos direitos fundamentais. A doutrina e a própria Suprema Corte já consolidaram que direitos socioambientais estão protegidos contra qualquer retrocesso. O que o PL 2159 propõe, portanto, não é só um erro — é um ataque frontal à própria arquitetura constitucional.
É impossível não recorrer à literatura para ilustrar o tamanho do desatino. Em “A Jangada de Pedra”, de José Saramago, a Península Ibérica se desprende do continente europeu e vagueia, sem rumo, pelo oceano. O romance é uma parábola sobre a deriva moral, política e existencial de sociedades que perderam seu norte ético. Assim também o Brasil, ao permitir que seus representantes esvaziem as salvaguardas ambientais, se lança à deriva, afastando-se não apenas dos compromissos internacionais, mas também dos pactos mais básicos de civilização. Perdemos, ao mesmo tempo, o chão e o senso.
O cinema recente também nos oferece um reflexo perturbador dessa realidade. No filme “Não Olhe Para Cima” (2021), dirigido por Adam Mckay, dois cientistas tentam desesperadamente alertar a humanidade sobre um cometa prestes a destruir a Terra. São ridicularizados, desacreditados e ignorados por políticos, empresários e pela sociedade entretida com escândalos irrelevantes. Substitua o cometa pela crise climática, pela destruição da Amazônia, pelo avanço do desmatamento no Cerrado e na Caatinga. A analogia não é só possível, é necessária. Tal como no filme, a negação da ciência e a captura do interesse público por lobbies econômicos nos conduzem ao abismo — não como acidente, mas como projeto.
Nas artes visuais, a angústia capturada por Edvard Munch em “O Grito” ecoa com assustadora atualidade. A figura solitária, de mãos no rosto, boca aberta em pavor, encapsula o desespero de quem assiste impotente à destruição iminente. Não é mais apenas um grito existencial — é o grito das florestas, dos rios, dos povos indígenas, da fauna, da flora e de qualquer cidadão que compreende que não há vida possível em um planeta colapsado. A paisagem distorcida do quadro já não é apenas uma metáfora: é o retrato literal das queimadas, das enchentes e das secas que se multiplicam no Brasil.
O PL 2159 também poderia ser roteiro de uma ficção científica distópica, como “Interestelar”, de Christopher Nolan. No filme, a Terra tornou-se inabitável, vítima de sucessivos colapsos ambientais. A humanidade, negligente e míope, consumiu seus próprios recursos até transformar o planeta em um deserto inóspito. É difícil não enxergar no PL um passo acelerado rumo a esse futuro — onde, depois de esgotar os aquíferos, exterminar as florestas e contaminar o ar e o solo, sobra apenas a busca desesperada por outro mundo. Só que, aqui, não há nave espacial que nos salve.
Se quisermos outra metáfora, mais cruel e mais contemporânea, talvez devêssemos recorrer ao teatro do absurdo, à obra “Esperando Godot”, de Samuel Beckett. Dois personagens esperam indefinidamente por alguém que nunca chega, numa espera vazia, paralisante, onde nada de efetivo acontece. Assim é o Brasil que acredita que desenvolvimento virá sacrificando o meio ambiente, apostando que o progresso nascerá de terras devastadas e rios contaminados. Godot não virá. E, se vier, encontrará um país irremediavelmente ferido.
O que se discute, afinal, não é uma questão técnica, como tentam fazer parecer os defensores do projeto. É uma escolha civilizatória. Aprovar o PL 2159 é escolher, deliberadamente, a barbárie sobre a sustentabilidade, o lucro de poucos sobre a dignidade de muitos, o imediato sobre o perene. É escrever, com tinta de fogo e fumaça, um epitáfio coletivo para as futuras gerações.
O debate, portanto, não é sobre burocracia versus desenvolvimento. É sobre civilização versus colapso. E não há mais espaço para neutralidade, nem para meias palavras. O PL da Devastação é um atentado não apenas contra a Constituição, mas contra a própria ideia de futuro.
PARA VER: Não olhe para cima (direção Adam McKay, 2021, disponível na Netflix)
PARA OUVIR: Absurdo (composta e interpretada por Vanessa da Mata) – disponível no YouTube
PARA LER: A Jangada de Pedra, de José Saramago, Editora Companhia das Letras (disponível na Amazon).