Em janeiro de 2023, o Brasil assistiu a um espetáculo grotesco: a invasão violenta às sedes dos Três Poderes da República. O episódio, fruto de delírios golpistas, foi não apenas um atentado às instituições, mas um ataque frontal à memória democrática construída com dificuldade desde o fim da ditadura militar. Agora, diante da possibilidade de anistia a parte dos envolvidos, é necessário reafirmar: perdoar esses atos não é promover a paz social, é, sim, abrir caminho para novos ciclos de violência e desordem.
A arte nos ensina que o esquecimento não é caminho de cura, mas de repetição do trauma. Em O Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, vemos como o fascismo espanhol deixou marcas profundas em gerações, justamente porque a impunidade e o silêncio sobre os crimes perpetuaram a dor. No Brasil, anistiar os golpistas seria também recusar-se a nomear o mal que foi cometido, apostando num esquecimento que alimenta a sombra em vez de dissipá-la.
As imagens brutais da destruição das obras de arte no Palácio do Planalto, como o vitral “Araguaia” de Marianne Peretti e a escultura As Mulatas de Di Cavalcanti, vandalizadas durante os ataques, não foram acidentais. Elas representaram uma simbologia clara: o desprezo pela cultura, pela diversidade e pela democracia. Em Fahrenheit 451, romance de Ray Bradbury adaptado ao cinema por François Truffaut, o Estado autoritário destrói livros como forma de apagar a memória crítica da sociedade. Assim também agiram os invasores de 8 de janeiro — na ânsia de apagar a história, vandalizaram seus símbolos.

A literatura brasileira oferece exemplos ainda mais contundentes sobre os perigos de ignorar a justiça. Em Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, a autora mostra como a marginalização social é alimentada por uma elite que se recusa a corrigir suas próprias violências. Sem justiça, sem enfrentamento real dos crimes cometidos, a desigualdade e o ressentimento apenas se aprofundam. Anistiar os golpistas seria, mais uma vez, lançar parte do povo ao esquecimento — mas, dessa vez, o próprio país como vítima.
Cinematografias como a de Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, já alertavam para a fragilidade das nossas instituições e para os perigos de não enfrentar a desinformação e o autoritarismo de frente. As cenas que capturam a tensão prévia aos ataques de 2023 parecem quase proféticas. Anistiar agora seria negar a veracidade desse alerta, fingindo que não há continuidade entre discurso de ódio, ataque às instituições e ameaça à democracia.
A paz verdadeira não se constrói sobre pactos de silêncio. Obras como Guernica, de Pablo Picasso, eternizaram a dor de um povo justamente para que ela não fosse esquecida nem normalizada. O grito visual que Picasso nos oferece é o mesmo que ecoa hoje: lembrar é resistir. Anistiar os crimes de 8 de janeiro seria como pintar uma nova “Guernica” e, logo depois, encobri-la com tinta branca, como se a tragédia pudesse ser apagada.
O sistema de justiça, no Brasil, tem a oportunidade histórica de afirmar que a democracia não é uma concessão, mas uma conquista que se defende com coragem e memória. O filme Argentina, 1985 (2022) de Santiago Mitre, ilustra com maestria a importância de julgar os crimes da ditadura militar para garantir que eles não se repitam. A coragem de não anistiar os culpados foi um marco na reconstrução do Estado democrático de direito argentino. O Brasil, que tantas vezes olhou para o próprio passado recente com indulgência, não pode cometer novamente o erro de premiar a violência com o esquecimento.
De se recordar, ainda, que a legislação que hoje sustentam as denúncias e condenações dos ataques golpistas foi concebida pelo Congresso Nacional como uma tentativa de punir movimentos sociais pela reforma agrária. Trata-se de provar o próprio veneno, pois muitos daqueles que votaram para que essas penas fossem endurecidas, hoje são denunciados com base nesta mesma legislação. É uma espécie de reparação histórica.
Assim, é pela arte, pela história e pela memória que dizemos: anistiar o 8 de janeiro é permitir que o fio da violência continue a tecer suas tramas no tecido da sociedade brasileira. Justiça não é vingança; é a base da reconstrução. E quem, como o Brasil, já sofreu tanto com o autoritarismo, deveria saber que não há futuro digno sem a coragem de olhar o presente com rigor e verdade.
PARA VER: Democracia em vertigem (direção Petra Costa, 2019, disponível na Netflix)
PARA OUVIR: Apesar de você (composta por Chico Buarque) – disponível no YouTube
PARA LER: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, tradução de Cid Knipel, Editora Biblioteca Azul, 1ª Edição (disponível na Amazon).